15 de outubro de 2023 Charmosa e surpreendente, “Lessons in Chemistry” é mais que a soma das suas partes

Charmosa e surpreendente, “Lessons in Chemistry” é mais que a soma das suas partes

Uma das facetas mais fascinantes da Química é a possibilidade de reunir elementos completamente inesperados e, a partir deles, criar algo novo — e se você, como eu, foi uma daquelas crianças que passou muitos dias encantada com seu kit de alquimia fazendo experimentos com vinagre e bicarbonato de sódio, sabe exatamente do que eu estou falando.

Antes que alguém me acuse de propaganda enganosa, não, “Lessons in Chemistry” (ou, em bom português, “Uma Questão de Química”), nova minissérie do Apple TV+ que teve seus dois primeiros episódios liberados na última sexta-feira (13/10), não é uma aula de Química para as pessoas fascinadas por elementos, reações, reagentes e produtos. Mas a principal força da produção está justamente nesse aspecto de transformação, tão presente nas ciências: a minissérie é capaz de reunir elementos já conhecidos e, ao colocá-los em contato com rumos inesperados, produzir algo um pouco diferente daquilo a que nos acostumamos.

No centro de tudo está Elizabeth Zott (Brie Larson), que começa a história, nos idos da década de 1950, como uma técnica de laboratório em um instituto de pesquisa. Fascinada pelo universo da Química e com grandes aspirações científicas, Elizabeth precisa, entretanto, desempenhar um papel subalterno em relação aos seus colegas, ocupando-se principalmente de tarefas como buscar café e limpar equipamentos — tudo por conta da posição de inferioridade imposta às mulheres em ambientes acadêmicos (e tantos outros) no período.

Eventualmente, Elizabeth se envolve com Calvin Evans (Lewis Pullman) — um químico que, apesar de extremamente renomado e vencedor de vários prêmios, parece não ter nenhum jeito com interações sociais. O relacionamento se transforma em um casamento e, quando um incidente faz com que a protagonista perca seu emprego no laboratório, ela se resigna a uma vida de atividades domésticas, filhos e frivolidades. 

Até que um dia, uma oportunidade chega literalmente à porta de Elizabeth: o cargo de apresentadora no Supper at Six, novo programa de culinária de uma estação de TV local — a posição ideal para ela exercer seu amor pela gastronomia, se aprofundar nos processos químicos inerentes à cozinha e, acima de tudo, passar para as suas espectadoras uma mensagem inspiradora (ou até subversiva, para a época) de contestação, libertação e um futuro um pouco mais brilhante.

Se a descrição acima soa um tanto quanto mais do mesmo, eu não posso lhe culpar: a trajetória de uma mulher no universo (extremamente machista) do show business nas décadas de 1950-60 já foi retratada magistralmente em “Maravilhosa Sra. Maisel” e até mesmo “Physical”, do Apple TV+, já falou — ainda que em outro período — sobre a libertação feminina sob a ótica da exposição midiática e das armadilhas inerentes a esse mundo.

A diferença é que “Lessons in Chemistry”, ainda que nos moldes familiares da história feminista de autodescoberta e liberdade, tem personalidade suficiente para brincar com os clichês do gênero, adicionar alguns twists francamente inesperados no decorrer da sua história e — não se preocupe, não teremos spoilers por aqui — levar a narrativa para lados que talvez não estejam no seu radar.

Parte do mérito, claro, está na obra original: a minissérie é baseada no romance de mesmo nome escrito por Bonnie Garmus e boa parte dos elementos temáticos presentes no livro foram transpostos de maneira relativamente fiel pelos roteiros do criador Lee Eisenberg (de “The Office”) e da sua equipe de escritores, que conta com talentos como Emily Fox e Elissa Karasik.

Ainda assim, até pela natureza da coisa, a versão televisiva de “Lessons in Chemistry” adiciona algumas novidades e expande tramas que são tratadas apenas colateralmente no livro — como a história da líder comunitária Harriet Sloane (Aja Naomi King), vizinha de Elizabeth que começa a liderar os protestos contra a construção de uma rodovia na vizinhança, ocupada majoritariamente por famílias negras. Ao aprofundar um conflito de natureza essencialmente racial (e, em alguns momentos, até colocá-lo numa posição central na trama), os roteiristas tomam a decisão acertada de pôr os jogos de opressão em perspectiva e pintar um cenário mais amplo, mais complexo, das questões das minorias nos Estados Unidos e sua evolução ao longo dos anos e décadas.

Ainda assim, é preciso dizer que a minissérie não funcionaria sem o seu elemento central, o sol em torno do qual giram todos os satélites narrativos: Brie Larson, que parece encontrar aqui o primeiro papel digno do seu talento desde que ganhou o Oscar de Melhor Atriz (por “O Quarto de Jack”) há sete longos anos. 

É fácil enxergar a razão pela qual a atriz — que também é produtora executiva da minissérie — se envolveu no projeto assim que obteve conhecimento do livro: de certa maneira, Larson (ou sua persona pública, pelo menos) e Elizabeth são muito próximas em atitude, humor e espírito, com uma tendência a respostas secas e francas que, vindas de uma mulher que se recusa à submissão, podem muitas vezes ser confundidas com arrogância. 

De fato, a própria trajetória de Larson como atriz e celebridade — sempre extremamente vocal em suas opiniões progressistas e, por isso, alvo de uma série de campanhas de assédio direcionado por incels e outras comunidades abjetas — tem um reflexo fortíssimo na progressão narrativa de “Lessons in Chemistry”, criando um efeito ligeiramente metalinguístico: ora, a minissérie se passa nos anos 1950-60, mas ainda estamos vendo esse tipo de babaquice na década de 2020. Muita coisa mudou, mas talvez nem tudo tenha mudado tanto assim.

Apesar disso, é bem verdade que a produção poderia se beneficiar mais caso escolhesse um caminho mais claro: embora seja um comentário mordaz sobre a posição feminina na segunda metade do século XX, o roteiro nunca permite que essa análise ganhe contornos mais complexos ou abrasivos porque, bom, estamos falando de uma comédia dramática, e uma comédia dramática precisa de piadas e momentos de humor aqui e ali. Por outro lado, a veia cômica da minissérie também nunca é muito bem desenvolvida — sério, essa não é a escolha certa se você pretende passar o fim de semana rolando de rir — justamente por conta do compromisso da narrativa com questões mais sérias.

Não estou querendo sugerir aqui que é impossível fazer humor trabalhando com temáticas cabeludas (basta ver qualquer coisa do Monty Python ou de Charlie Chaplin, por exemplo), apenas que “Lessons in Chemistry” não é particularmente hábil nisso. Para isso, basta darmos uma olhada nos vilões da série, todos unidimensionais e caricatos, sem quaisquer complexidades que possam lhes conferir algum interesse por parte do público. Afinal, é mais fácil comprar as dificuldades dos mocinhos quando você não consegue se conectar com absolutamente nada dos vilões, não é verdade?

O ponto é que, no fim das contas, todos esses elementos — sim, até mesmo os vilões saídos das páginas de um gibi — se combinam para criar algo único, até novo. Isso é “Lessons of Chemistry”: uma fórmula que se parece com várias que você já viu por aí, mas resulta em um produto ligeiramente diferente, um tanto quanto agridoce e certamente feito com muito cuidado.

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